Em tempos nos quais se discute se a Terra é plana ou não, causa pouco espanto o clamor sobre a necessidade de a Netflix afirmar, em letras garrafais, que The Crown é uma ficção e não o retrato da realidade. É a necessidade de deixar explícito as obviedades, sintoma da burrice coletiva que assola a sociedade mundial em uma era que a informação equilibrada e a razão pura deveriam prevalecer contra a insensatez.
Vejam que esse assunto de The Crown é discutido até no meio político do Reino Unido, com ministros e pessoas do governo cobrando a Netflix. O que querem é um recado antes dos episódios, informando claramente que aquilo se trata de uma obra adaptada da realidade.
“Sem isso”, disse Oliver Dowden, secretário da cultura do Reino Unido, “temo que a geração de telespectadores que não vivenciaram os eventos encenados possam confundir a ficção com os fatos.”
Tal posicionamento, no mínimo, duvida da inteligência das pessoas no geral. Ou, pegando pelo ponto de vista do mundo invertido, talvez a maioria do público esteja tão dopada por fake news e realidades inventadas que é preciso mesmo apontar que uma série de ficção seja mesmo… ficção.
Alguém com a mente sã sabe que The Crown não é um documentário. E mesmo se fosse um documentário, não quer dizer que seria necessariamente uma reprodução fidedigna dos eventos, pois há o viés do diretor, do produtor, e por aí vai.
Acertadamente, a Netflix acredita no discernimento do público e, ao menos até a quarta temporada, não mostrou qualquer aviso de que a série vencedora do Emmy de melhor drama é uma ficção, não uma realidade.
Cedendo um pouquinho à pressão externa, a gigante do streaming fez um ajuste na descrição do trailer da quinta temporada de The Crown, dando ali um anúncio que nunca tinha aparecido antes. Diz a sinopse do vídeo: “Inspirada em eventos reais, esta dramatização fictícia retrata a história da rainha Elizabeth 2ª e os eventos políticos e pessoais que moldaram seu reinado.”
Em nota divulgada pelo site Variety, a porta-voz da Netflix foi precisa ao repercutir a celeuma. “A série The Crown sempre foi apresentada como um drama baseado em eventos históricos. A quinta temporada é uma dramatização ficcional, imaginando o que poderia ter acontecido a portas fechadas durante uma década significativa para a família real britânica [anos 90], eventos de um período já documentado por jornalistas, biógrafos e historiadores.”
Qualquer atração baseada em fatos reais usa a licença criativa para amarrar histórias paralelas e criar uma narrativa atraente ao público. Uma cena a portas fechadas de conversa entre a rainha Elizabeth 2ª e o marido é pura ficção, trabalho da mente de roteiristas que se dedicam a dar os nós no andamento da trama. Quem esteve ali para dizer como foi o papo, a não ser as duas pessoas presentes?
Naturalmente, é de se entender que essa cena, usada aqui como exemplo, é ficção, algo que todo mundo deveria saber. Mas pelo jeito não é assim. Por isso querem que o óbvio seja destacado.
The Crown somente é um alvo da burrice coletiva que afeta tantas áreas do saber humano, da história à ciência, passando também pelo mundo do entretenimento.
João da Paz é editor-chefe do site Diário de Séries. Jornalista pós-graduado e showrunner, trabalha na cobertura jornalística especializada em séries desde 2013. Clique aqui e leia todos os textos de João da Paz – email: contato@diariodeseries.com.br