Na comédia Um Espião Infiltrado (Netflix), logo na primeira cena, Ted Danson aparece com um rosto mais jovem, como nos tempos da série Cheers, na pele do professor aposentado Charles. O truque faz parte de uma onda crescente em Hollywood, a de rejuvenescer atores usando armas da inteligência artificial (IA), fato que assombra por não ser uma operação totalmente regulamentada.
Quem paga o preço são os trabalhadores de efeitos especiais e visuais, operários que correm risco de extinção na indústria de entretenimento americana. As produtoras simplesmente fazem as contas e percebem que é muito mais barato aplicar um efeito de rejuvenescimento usando IA do que contratar centenas de profissionais para executar o mesmo serviço.
Pegando como exemplo um filme de duas horas. São cerca de 24 frames por segundo (perto de 200 mil frames, no total). O time de efeitos especiais e visuais manipula um frame por vez, ajustando tudo para causar o resultado determinado, mexendo nas luzes, cores, movimentação…
No filme Aqui (2024), com Tom Hanks e Robin Wright, os personagens de ambos vão da juventude à vida na terceira idade. Os rostos dos protagonistas foram totalmente manipulados por IA, de ponta a ponta. O produtor Jim Geduldick, especializado em efeitos visuais, com passagens por séries como Mestres do Ar (Apple TV+), afirmou que o filme Aqui seria impossível de ser feito sem a inteligência artificial.
O orçamento total de Aqui foi de 45 milhões de dólares. No longa O Curioso Caso de Benjamin Button (2008), o dobro disso foi gasto somente em efeitos visuais. O orçamento total do filme estrelado por Brad Pitt foi de 150 milhões de dólares; o ator viveu um personagem que rejuvenescia com o passar do tempo, ao contrário do curso normal da vida.
Notou a diferença de valores? Logo, estúdios e produtoras não vão pensar duas vezes em aplicar IA em situações como essa, de rejuvenescimento, seja em uma única cena ou num filme inteiro. O problema é a moral e a legalidade disso.
A maior paralisação da história de Hollywood, greve dupla de atores e roteiristas que parou a indústria durante seis meses no ano passado, foi bastante pautada pela regulamentação do uso da IA. No caso dos atores, a luta se deu para obrigar o consentimento dos artistas sobre a permissão de usar IA na reprodução de sua imagem.
Até aí, tudo bem. Tom Hanks e Ted Danson, por exemplo, assinaram contratos nos quais autorizaram o respectivo rejuvenescimento via inteligência artificial. A questão é sobre os profissionais que executam essa missão.
Muitos operários de Hollywood não têm a mesma proteção de grandes sindicatos específicos de classe, sendo assim representados pelo Iatse (Aliança Internacional de Funcionários de Palcos Teatrais). E a maioria do pessoal dos efeitos não é sindicalizada.
Atualmente, não existe um requisito contratual que determina um número mínimo de especialistas em efeitos especiais para trabalharem em um filme ou série. Ou seja, nada impede que estúdios e produtoras troquem uma equipe inteira de profissionais de efeitos visuais pela IA.
Lisa Kudrow, a eterna Phoebe de Friends, criticou veementemente o filme Aqui, por, segundo ela, “endossar o uso da IA”. A atriz demonstrou-se assustada nem tanto com o alcance da tecnologia, mas com a falta de proteção dada a atores e profissionais de Hollywood.
A inteligência artificial chegou para ficar, sem dar sinais de arrefecimento. Portanto, é preciso regulamentá-la para proteger empregos. “Que tipo de trabalho sobrará para os humanos?”, perguntou Lisa, em entrevista ao podcast Armchair Expert. “E depois? Haverá algum tipo de auxílio salarial pago aos operários? Ninguém mais vai precisar trabalhar? Qual o limite disso tudo?”. •
João da Paz é editor-chefe do site Diário de Séries. Jornalista pós-graduado e showrunner, trabalha na cobertura jornalística especializada em séries desde 2013. Clique aqui e leia todos os textos de João da Paz – email: contato@diariodeseries.com.br