A comédia surreal Sou de Virgem é audaciosa ao extremo. Criada por militante comunista, a trama prega o fim do capitalismo no Prime Video, streaming integrante de uma das maiores corporações do planeta Terra, a Amazon, que bate de frente com funcionários sindicalizados e é acusada de colocá-los em situações degradantes de trabalho, tudo em prol do lucro.
E a crítica ao sistema capitalista não é subliminar. O combate é explícito, liderado pela personagem Jones (Kara Young), situada à esquerda no espectro político/social e sem freio na língua quando o assunto é resistência contra a força hegemônica enraizada no poder.
Esse embate é ilustrado muito bem no quarto episódio. O jovem Scat (Allius Barnes), amigo de Jones, feriu a barriga depois de cair de bicicleta; um objeto cortante penetrou na pele. Quase sem forças, ele chegou em um hospital, chamado de Krown, pedindo atendimento, mas acabou sendo expulso de lá, arrastado a força pelo segurança, por não ter plano de saúde. Quando Scat chegou em um hospital com médicos dispostos a atendê-lo, era tarde: ele morreu.

O levante anticapitalista na Amazon
Jones conclama um protesto em frente ao hospital que recusou atender Scat. No local, cercado de manifestantes, ela faz um discurso emotivo e cortante.
“Isso não foi um acidente. Nunca é um acidente. O hospital deixa pobres morrerem para lucrar com isso”, esbravejou. “E as mesmas forças que mataram Scat também estão tentando nos matar.”
A militante esquerdista fala a real ao destrinchar o que chama de “crise do capitalismo”:
“No capitalismo, empresas combinam mão de obra e materiais para vender bens ou serviços. Todo ano, devem ganhar mais do que no anterior para competir ou perdem para a concorrência. E fazem isso baixando salários e aumentando preços. Assim, os trabalhadores têm menos dinheiro para comprar e a empresa perde dinheiro. Como resolvem isso? Volta a baixar salários e aumentar preços. É uma espiral descendente envolvendo muita gente que não podem comprar os bens que o sistema produz.”
Jones usa essa argumentação para colocar o hospital negligente na roda: “Hospitais particulares como o Krown funcionam assim. É uma rede de caixotes com o objetivo de enviar dinheiro aos donos. E para tirar dinheiro desses caixotes, eles vendem saúde como produto.”
Ela continua sua manifestação soltando um alerta: “Nós compramos a ideia de que os hospitais existem para ajudar as pessoas. Mas a crise do capitalismo os leva a aumentar os preços enquanto o salário das pessoas cai. Assim, as pessoas não podem pagar e são deixadas de lado. Em casos como os de Scat, elas morrem.”
A conclusão do discurso vem com uma convocação de greve:
“Nosso poder emana do fato de que nós geramos esse lucro! Todos esses problemas têm a mesma solução imediata: paralisar tudo e deixá-los de mãos atadas. Tudo está conectado, e é assim que devemos lutar. Eles até vão poder escolher: ouvir nossas exigências e ter menos lucro, ou vamos paralisar tudo, e o lucro deles vai a zero!”
Sou de Virgem, além da comédia absurda, como ter personagem com 4 metros de altura, tem como foco entregar uma narrativa que evidencia como o capitalismo esmaga a todos (aqueles sem o poder do capital, lógico).
O discurso de Jones motiva o protagonista, o gigante Cootie (Jharrel Jerome), a seguir na mesma batalha da amiga ativista. A trama tem a pegada de amadurecimento de um adolescente recluso conhecendo o mundo ao redor. Cootie começa a entender que precisa lutar contra gigantes maiores do que eles: os demônios do capitalismo.

Cada personagem de Sou de Virgem tem um pouco do criador Boots Riley, cineasta americano com trabalhos marcados pela crítica social. Em entrevista à Variety, ele falou sobre o embate desenrolado na atração, expandindo um pouco mais qual a sua visão sobre o capitalismo.
“Eu acredito que as pessoas devem, democraticamente, controlar a riqueza que produzem com o suor de seu trabalho”, afirmou. “E como você consegue unir a classe trabalhadora? Tem de fazer com que eles entendam o poder que possuem. E, sob o capitalismo, o poder está na força laboral.”
“Precisa existir um movimento trabalhista radical, com militantes das massas, que fique cada vez mais radical com o passar do tempo. Até que as pessoas assumam os lugares [de liderança] onde trabalham e mudem a natureza da sociedade”, concluiu.
Toda essa mensagem é transmitida em um streaming cuja empresa dona tem empregados, entregadores de encomendas atrás de volantes de vans e caminhões, que urinam em garrafas pets enquanto dirigem para não perder tempo em banheiros, cumprindo dessa forma as metas estabelecidas pela chefia. O lucro impera e atropela a mínima decência e respeito às leis trabalhistas.
O projeto audacioso dá o recado em uma plataforma de alcance global contra o sistema capitalista que a originou.
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João da Paz é editor-chefe do site Diário de Séries. Jornalista pós-graduado e showrunner, trabalha na cobertura jornalística especializada em séries desde 2013. Clique aqui e leia todos os textos de João da Paz – email: contato@diariodeseries.com.br