A minissérie Senna, que estreia na Netflix na sexta-feira (29), chega para reforçar a imagem de Ayrton Senna como herói nacional. Pelo fato de a produção ter o aval da família do piloto, certos aspectos mais polêmicos de sua personalidade ficaram de fora, mesmo aqueles conhecidos do grande público. Por mais que a trama apresente certos pontos negativos do personagem titular, o saldo final é de um homem acima dos demais.
O quanto isso é prejudicial para a minissérie em si? Quer dizer, uma trama biográfica deveria contar a história completa, sem maquiar o lado ruim para jogar luz somente nas coisas positivas. Ficaria com o público a interpretação sobre a moral do protagonista, recebendo uma trama sem viés.
Não é o caso de Senna. O carimbo oficial deixa claro que a atração copia a narrativa perpetuada pela Globo, emissora que exibiu todas as corridas do tricampeão de Fórmula 1 para o Brasil todo, entre os anos 1980 e 1990.
Na emissora carioca, ecoava a voz de que Ayrton nunca errava, seja fora ou dentro das pistas. O ponto mais alto do pódio sempre era conquistado após ações épicas na pilotagem entre curvas e retas. Caso qualquer falha acontecesse, a culpa sempre era do outro, seja da equipe ou do adversário que bateu nele, não o contrário.
Vale lembrar que, anos atrás, um filme de grandes proporções foi planejado sobre Ayrton, tendo o renomado ator Antonio Banderas como protagonista. A produção foi implodida pela família do piloto, porque ela não teria controle do que seria encenado no longa-metragem.
Quem assina a produção de Senna não esconde a parcialidade. Para a revista Veja, Vicente Amorim, diretor e showrunner da minissérie, disse: “A Fórmula 1 tem muitos ídolos, mas só um herói”. O ator Gabriel Leone, intérprete de Ayrton, reforçou essa ideia em papo com o jornal Folha de S.Paulo, comentando que o drama esportivo estreia em um momento ideal, no qual o país precisa novamente se encontrar enquanto um só povo. Para tanto, precisa de um herói.
Essa apresentação de uma figura infalível, na condição técnica de uma minissérie biográfica, essencialmente é ruim. São deixadas de lado várias características importantes de qualquer ser humano, como complexidades no trato com outras pessoas, rivais ou não. A questão é que Senna foi feita para mostrar o piloto NÃO como um ser humano qualquer.
A imagem propagada é de um bom moço, de classe média alta, que representou o Brasil ao redor do mundo, empunhando literalmente a bandeira verde amarela. Na gaveta, ficaram as nuances da pessoa, as contradições… Mesmo que seja uma minissérie oficial, é contraproducente não se escorar na veracidade dos fatos.
Numa avaliação imparcial, a minissérie Senna pode ser vista como mediana por essa postura sanitarista. Sem dúvida, o piloto segue sendo referência para muitos brasileiros por tudo o que representou. Talentoso, está na lista dos maiores pilotos de Fórmula 1 de todos os tempos. Só que pregá-lo como mito é uma derrapada daquelas. Perdeu-se a oportunidade de fazer algo mais maduro. •
João da Paz é editor-chefe do site Diário de Séries. Jornalista pós-graduado e showrunner, trabalha na cobertura jornalística especializada em séries desde 2013. Clique aqui e leia todos os textos de João da Paz – email: contato@diariodeseries.com.br